Um fósforo por dia
Uma
vez por dia, antes de sair o sol, minha avó riscava um fósforo e acendia uma
lamparina. Apagava o palito e o colocava em outra caixa. Com a lamparina,
acendia o velho fogão à lenha que se mantinha vivo o dia inteiro. Se precisasse
cozinhar no fogão a gás, carregava o fogo de um fogão ao outro com um dos
fósforos usados e só então o lançava nas brasas.
Minha
prima riu com esta história. Pareceu-lhe exagero. Por que alguém economizaria
um fósforo? Hoje, talvez, seja algo impensado, mas no mato tudo tem um valor
exato. Não apenas pela distância dos centros urbanos, do curto dinheiro feito
praticamente de ano em ano com a safra ou com a venda de algum animal do
cercado, mas porque no mato o desperdício é um tipo de ignorância.
Uma
caixa de fósforos durava 40 dias, embora se precisasse de fósforo mais de uma
vez por dia. Essa matemática é que era inteligente. Dificilmente,
encontraríamos um palito no cisqueiro. Aliás, qualquer coisa que não fosse
estritamente desnecessário, talvez por isso só vim aprender a palavra lixo na
cidade.
Cisqueiro
é onde se juntam ciscos, lugar das galinhas remexerem em busca de qualquer
coisa de comer o que é quase nada também. Tínhamos um próximo de casa, formado
em sua maioria por cinzas do velho fogão à lenha. Nunca mudou de tamanho a
minha infância toda. É que as cinzas, depois de curadas, servem para adubar as
plantas.
Meu
avô vinha da roçada em seu movimento peculiar. Balançava-se como um homem se
balança. Braços, cabeça e tronco. As pernas chutavam uma calça quadricular
pelos remendos colocados nela. Uma calça sempre remendava a outra e, mesmo se
tornando uma calça de remendos, servia por meses, anos talvez. Importava apenas
proteger os membros e segurar no cós.
Muita
ignorância usar calça sem remendo na roçada. Vai pisar em toco, rasgar em
jurema, encher de carrapicho, dizia minha avó. As camisas do mesmo jeito.
Então, um guarda-roupa de quatro portas era suficiente para todos guardarmos o
que vestíamos para ir à cidade uma vez por semana. O de usar na lida ficava no
armazém junto às botas e ferramentas. Era tudo natural.
Uma
vez, minha avó ficou doente. O médico disse que ela não poderia comer carne
vermelha e sendo frango, teria de ser um bicho novo. A recomendação era apenas
enquanto se recuperasse, mas ela determinou como decisão perpétua. Nunca mais
comeu carne vermelha e escolhia no terreiro, duas vezes por ano, um frango de
poucos meses para completar sua refeição.
Meu
avô não seguiu a receita. Nunca parou de mascar ou de tomar cerveja. Gostava de
mão de vaca, buchada e qualquer comida gordurosa. O coração cresceu e ele
viajou para sempre aos 76 anos. Novo para a disposição que tinha. Só não estava
na roçada quando precisava ir ao médico.
Vovó,
com sua dieta, que incluía uma dose cavalar de aguardente uma vez por semana,
ficou para a semente. Aos 96 anos, embora sem memória à custa do Alzheimer,
passou a nos olhar e dizer: “tá bom”, como quem dissesse “já vivi demais”. E,
numa manhã qualquer, na cama de um hospital, sendo medicada, minha irmã disse
que ela se ajeitou, baixou a cabeça e foi saindo aos poucos. Quase como decisão
própria.
Viveu
seu fio inteiro e ela mesma o cortou.
Passou
a vida inteira com o mínimo. Tudo sempre regrado, pouco, migalhado. Nunca
reclamou de não ter as coisas e não deixou faltar nada para nós ou para
qualquer pessoa que batesse à porta daquela lonjura. O meio do nada, de frente
a uma bifurcação de estradas brancas e vazias onde qualquer visita era uma
grande surpresa e festa.
Em
dois dias entraremos em um novo ano carregados de necessidades e presentes. De
dívidas também pelos presentes comprados. Nosso lixo não para de crescer.
Produzo mais lixo em uma única semana do que a minha infância inteira. É como
se eu tivesse desaprendido, ou esteja renegando a lição do fósforo. Da calça
remendada, das necessidades primárias.
O
que somos não deve ser o que parecemos. Precisamos ter aquilo que nos é
essencial, e somente. Não para economizarmos e guardar dinheiro. Dinheiro é um
problema em potencial. É pensar como cautela no que necessitamos e utilizar com
calma, olhando para si e para o ambiente externo. Somos responsáveis por todo o
desequilíbrio da vida, da natureza. Quantas sacolas poderiam ser evitadas nos
bueiros? E não é apenas por irresponsabilidade, mas por excesso de sacolas, de
sapatos, de clipes de papel.
Ação
e reação. Uns com muito, outros quase sem nada, mas todos querendo mais, até do
que podem suportar. A vida carreia os vícios, embora ensine o essencial. Se
meus avós pudessem riscar dez caixas de fósforos por dia, ainda assim só
riscariam um único fósforo. Porque nunca foram ignorantes e nunca se sentiram a
parte da natureza, melhores do que o gado ou os passarinhos. Era também
ignorância se sentir superior ao sistema natural das coisas.
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