Silencio
Você
fala demais, é melhor que se expresse escrevendo. É, é mesmo. Eu vou parar de
falar e escrever agora para qualquer circunstância em que envolva a minha
existência. Vou, vou sim, vou escrever e quem perder a paciência porque eu não
respondo mais nada que não seja da vida cotidiana e de sobrevivência: sim, não,
quero, não quero, vá pela direita, cuidado, o caminhão vai esmagar sua cabeça.
Quem perder a paciência que se mude. Fora isso, só escrevendo. Escreverei
e-mails curtos para os que não gostam dos que, como eu, falam demais. Dos que,
como eu, tiveram o direito a voz tolhido na infância: menino não precisa falar;
menino não tem direito. Cale-se! Cale-se seu filho de uma égua. Você está
certo, mas errou por ter falado. Cale-se, cachorro! E dos que, como eu, estão
novamente tolhidos de falar pelos cotovelos, de derramar sua verborragia filosófica
barata, sua cara de insegurança, de incerteza, de alguém a quem não se deve
confiar. A minha cara é de desconfiança. É sim, eu não confio em você porque em
seus olhos está claramente nítido que você não confia na minha mão. Você não
acha que sou capaz de prover um futuro para outra pessoa, de entrar numa guerra
e matar quantos soldados tristes eu encontrar. Pois eu mataria até os
comandantes, mesmo quando eles implorassem pela vida. Não me mate, tenho
família, estou rendido, respeite a rendição militar. Militar? Tá louco, seu
espúrio, eu sou um civil em farda. Eu sou civil do Brasil, eu mato porque
milícia é milícia. E assim eu mataria a minha guerra verbalizando a minha
fúria, a minha ausência de lugar de fala. Do que adianta cometer um ato de ação
enérgica sem narrar os pensamentos, dizer da fúria que se derrama, do desejo
que escorre em meus canais fisiológicos? Ficarei em silêncio com as palavras,
mas não permitirei que tente calar minha expressão de fúria, meu ódio no olho
de tantos anos impelido com punhal na base do crânio, uma lâmina preparada para
arrancar-me a língua. Minha testa enrugada expressará o meu tormento ou
alegria; meu corpo vai gritar pelas minhas mãos e ramificar minhas energias
para o silêncio que hora me cala. Silêncio ao professor verborrágico, à mulher
hiperbólica, ao colega morto na ausência de autêntica liberdade da palavra.
Silêncio ao mundo de contradição, ao país dos tradicionalistas, torturadores,
assediadores de novinhas, ladrões de cargas desastradas. Silêncio à literatura
opressora dos doutores das regras, das normas, das listas dos mais vendidos,
das editoras vira-latas incapazes de criar leitores em todos os níveis.
Silêncio à religião que julga o outro, que carrega na boca o sabor do pecado, o
nome do diabo, o inferno a um passo da perna. Você é melhor do que eu, claro
que é, mas isso é o que você acha. Vamos falar de nosso passado e descobrir
quem tem mais coragem de dizer o que fomos e estamos sendo? Quero ver na cara
dura até onde vai a sua moral. Se for para falar de incompetência, vamos falar,
mas não com palavras, porque agora eu não falo mais, eu sou um mudo com fala.
Concretizo as informações através da escrita e assim posso imprimir melhor meus
sentimentos, porque a literatura salvou um tanto do que poderia ter sido e por
aqui existe uma liberdade ainda não alcançada pela mão invisível dos infelizes
carniceiros de liberdade. Açougueiros sem corte definido, adoradores de sangue.
É de sangue que você gosta, né? Confesse! Você é um fracasso de si mesmo, mas é
em mim que se ampara para não morrer. É nos fracos, que escrevem devagar, nos
angustiados que falam demais que você se empodera para se determinar forte. E
quando não consegue, silencia na religião, na ausência de palavras que lhe
entrega ao mundo. É difícil viver e ser alguém numa sociedade tão medíocre.
Você é como essas pessoas. Um robô humano programado para comer, transar, se
reproduzir e morrer com caixão na sala de casa e pessoas fingindo chorar sua
partida. Logo, até sua foto começará a sumir da estante, mas se você nascer de
novo, será a mesma coisa, a mesma pessoa pequena mergulhada no medo
estapafúrdio de pecar e não ir para o céu. Por isso, mesmo que não vá à igreja,
você acredita que a igreja lhe salvará e eu rio disso, rio porque rir eu posso.
Não posso é escrever o riso, não há sinais que representem os silfos de minhas
cordas vocais, o ronco de meu esôfago espremendo o ar a ser liberado quando eu
liberto o riso frouxe acumulado em meu estômago. E será um riso largo e cínico,
assim como eu. Cínico, cafajeste, mau-caráter. Não é assim que se institui o
seu olhar em mim? Pois é assim que me faço feliz estando determinado em seus
estereótipos. É você quem pergunta se eu sou feliz e eu respondo com outra
pergunta. Que tipo de idiota pergunta se outro ser humano é feliz? Quem pensa
ser esta criatura mística para achar que conhece de felicidade? Jesus Cristo
estava feliz na cruz? Se não, como pode ter sido um homem feliz? Ele pode ter
estado feliz em alguns momentos de sua peregrinação, nos tempos em que a mídia
não o cobria diariamente e que, talvez, ele tenha sido menino, adolescente e
tenha provado o sabor da vida. Em quem você está se espelhando para me fazer
uma pergunta tão estúpida? Por que você gosta de ser estúpido e me fazer perder
o tempo que não quero ter com você? Por que não me deixa aqui onde posso falar
comigo mesmo em frente ao espelho e derramar em mim todas as palavras não ditas
na ação impeditiva de construir o pensamento numa conversa não matemática?
Deixe-me com minhas palavras, recue, busque em você mesmo as respostas que não
encontra em mim e, por favor, me deixe em paz. Eu vou viver a minha vida sem
compromisso e você vai para o quinto dos infernos.
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