Apenas um picolé


Quem começou foi Maninho, eu sou igual aos outros.

Quando Jorge Cach inventou essa história eu já sabia que não iria funcionar. Como pode isso no Brasil, ainda que fosse Alemanha, Finlândia, Canadá, mas no Brasil? Dá certo não, meu companheiro! Nem dá, nem nunca vai dar certo. O povo daqui carrega no desejo a ânsia pela ilegalidade. Começa tudo no futebol onde é possível ser malandro. Quer dizer, o futebol é um lugar onde não ser malandro lhe tira do time. No futebol e no forró. Ah, o forró sempre foi assim, mas agora, então. Para chegar às meninas, tem de ser malandro, ter cara de pau, tem de fingir ser quem não é. Uma hipocrisia dizer agora que o que faço é errado. Errado é o Jorge Cach inventar uma economia dessas e depois não tem condições de manter. Ora se eu é que vou cuidar dos negócios de ninguém, cuido da minha vida e é muito mal.

Essa coisa começou tem umas semanas. Vou contar do começo. O Jorge Cach que é funcionário terceirizado de uma terceirizada do petróleo começou a andar pelo mundo perfurando poços. Um dos maiores especialistas que já ouvi falar nesta área, para dizer a verdade. Então, numa dessas viagens pela Europa ele viu o primeiro modelo. Fica o freezer cheio de picolés – dos bons, mais caros, e dos mais baratos, mas bons também –, em um local específico e você pega o produto e deixa o dinheiro numa caixinha. É uma boa ideia, verdade. Não tem ninguém para lhe vender, nem câmeras para fiscalizar. É um negócio com honestidade e ele contabiliza no final se teve mais lucro ou prejuízo. O Jorge instalou a dele na área externa – coberta e aberta o dia todo – da botica de Lúcio Armando, que fica ali, ao lado do banco, sabe?

Pois foi assim que essa história começou. E no começo deu bastante certo. Deu porque tinha um monte de gente querendo se mostrar honesta. Então, chegavam, compravam o picolé e avisavam em voz alta: dinheiro na caixa! Como tinha outros vendo, interessados em saber da vida alheia, o gesto era recompensador para quem pagava. Houve falatório? Houve, é claro, sabe como é o povo daqui. “Ah, fulaninho só botou o dinheiro depois que chupou o picolé”. “Botou o dinheiro porque tinha gente olhando, porque aquele ali não paga a ninguém”. “Aquele só compra dos mais baratos e duvido que coloque o dinheiro todo”. Mesmo assim, o Jorge contou lucro nos primeiros dias. A empolgação da novidade nessa cidadezinha fez com que muita gente comprasse mais de uma vez por dia. Mas aí, foi caindo e ficou no que os empresários chamam de fluxo natural. Dias bons, dias nem tanto, até o dia em que Maninho foi lá.

O que aconteceu foi que Maninho não tinha dinheiro quando passou em frente à botica. Entrou, pegou um picolé e avisou a seu Lúcio: “pago mais tarde”. E saiu. Interessante é que as pessoas se entreolharam, mas pensaram que se não tem ninguém fiscalizando, quem vai reclamar? Pode-se pagar depois. Alguém teve coragem de perguntar à Maninho se aquela ação estava certa. Sabe o que ele disse? Disse que estava sim e que é muito fácil para o Jorge botar um negócio e deixar toda a responsabilidade para o cliente. Ele nem serve ninguém e ainda quer que fiscalizemos por ele. Então, de protesto, Maninho disse que não pagaria mais aquele picolé. Também não foi mais lá pegar nada, mas nem poderia. No final do dia estavam vazios o freezer e a caixinha. Lá, alguns bilhetes anônimos: “pago depois”.

Desse dia em diante, virou trouxa quem pagava. “Besta arrogante, só quer ser importante”. “Não sabe ser esperto e não tem respeito por si próprio”. “Paga não porque é honesto, paga para se mostrar”. E foi assim que eu também peguei esse picolé. Você chega agora com toda essa moral, mas quem garante que você não pegou também? Eu mesmo não duvido, lhe conheço, sei que você tem suas falhas, poderia até contar se sua vida fosse de minha conta. Você e o Jorge precisam entender que aqui não é o Japão, a Noruega, nem a País de Gales, aqui é o Brasil, poxa, e no Brasil as coisas são assim mesmo. Ser esperto sobrepõe ser honesto desde que os portugueses chegaram e trocaram nosso pau-brasil por espelhos. Então, os índios, depois brasileiros e brasilianos começaram a se olhar muito e pensar apenas em si. Disso, construíram uma moral brasiliense e assim somos quem somos e todo o mundo gosta da gente assim. Futebol e carnaval. Agora é o seguinte: se você não vai me prender, então me dê licença que vou chupar esse picolé antes que derreta, quem sabe tenha a sorte de pegar outro antes que esvaziem o freezer.

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