O amor e suas mentiras


Antônio, Antônio, presta atenção no que você está dizendo, meu amigo. Vira esse copo por você, o único que merece todo esse sentimento que diz está fluindo aí dentro do seu corpo envelhecido. Homem, acredite, somos seres biológicos dominados por trilhões de células independentes que só pensam em si mesmas e quando se revoltam, quando se deprimem, nos matam ou viram câncer. Então se você diz que a ama e acha que ela sente o mesmo, mas não está aqui com você, talvez esteja com outro, pare um pouco e pense com calma sobre isso.

Sabe o que eu faço quando alguém diz que me ama, Antônio? Eu não faço nada, ainda que me abale, porque só nossos pais e filhos nos amam de verdade e tem deles que nem amam. Amar é uma ação exatamente egoísta, gravemente egoísta. Então, a pessoa não me ama, ama a si mesma e a ideia de que me ama. Não ama a mim, não a esse corpo também envelhecido, essas mãos enrugadas da enxada, mas alguém que essa pessoa inventou de mim. Porque conviver comigo não é fácil. Sei disso porque estou nesta missão há mais de 50 anos. Eu sou difícil e fico pior a cada dia.

É claro que não vim aqui atacar sua possível felicidade ou aumentar seu sofrimento, destruir esse negócio delicioso que é o amor ocasional. É bom demais, Antônio, quando a gente está sozinho, fragilizado, cansado e aparece esses amores rompantes, ocasionais. Vixe, como é bom! Mas olhe para nós, homem, veja se depois de tudo que passamos, depois de tanta roça, de tanta angústia, dor de verdade pela ausência de perspectiva, emprego e renda; nós que arrancamos todos os dias as batatas para comer no almoço e no jantar, veja se temos tempo para a fragilidade do amor.

Bebe outra, meu amigo, bebe e até chora se quiser. Mas me escute antes de pedir para aumentar esse modão bão aí na vitrola. Aliás, que modão, hem, Antônio? Rapaz, esse Eduardo quando quer fazer o cara sofrer, ele sabe como. Bicho malvado. Aí é outra coisa, viu! Um cara desses escreve essas palavras doídas porque é o meio de sobrevivência dele. Então, tome pinga e tome sofrer pra escrever esses negócios. Até eu que não deixo mais essa besteira de amor me seduzir, sofro e quero arrastar o chifre no asfalto. Ohhh coração véi pra gostar de sofrer, Antônio.

Esse seu sofrimento, dá pra ver daqui que é por cima, como se diz: superficial. Amizade é amizade, paixão é paixão, passado é passado. Misture essas coisas e você vai construir uma ideia bonita, mas para se tornar realidade tem de ser de parte a parte. Quem ama faz assim igual você: sofre, espera, bebe e procura. O resto é só ansiedade, vontade de querer, sem querer, egoísmo. E você sofre porque sofrer é romântico, ainda mais ouvindo o Eduardo. Êta, cabra doído, sô!

Agora bebe, Antônio, bebe mais e esquece essas bobagens que estou lhe dizendo, porque o egoísmo também está em nós e precisamos sentir desejos sem explicação. Vou ficar aqui, amigo, para lhe levar para casa quando você cair de bêbado. Amanhã, quando estiver de ressaca, com dor de cabeça e botando os bofes pra fora, começo a dizer tudo de novo. Aí, quando a ressaca passar, essa história de amor vai junto.

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