A última relíquia
Na
última semana antes de me mudar para Natal, aproveitei o sábado e, sem explicar
nada, segui de carro de Mossoró até a minha terra de origem formativa, no
coração da Chapada do Apodi. Cheguei ao sítio Milagre por volta das 16h30 e
quando os que estavam comigo no carro pensaram em desembarcar, chamei meu irmão
e minha mãe, que ali moram, para me acompanharem em um percurso mais à frente.
Me dirigi ao lugar mais simbólico de minha existência, o meu deserto, torrão
amarronzado e seco, sítio do meu passaredo e de onde eu tiro as mais tenras
lembranças. Onde me reencontro menino e renasço.
Tudo
ali está diferente, o próprio lugar mudou. Todas as propriedades ao seu entorno
viraram plantações infinitas de melão, mamão, melancia. Só a Lagoa do Feijão,
pequena gleba de 60 hectares, ainda resiste com suas cercas mal riscadas. A
casa velha não existe mais, apenas o chão vazio e um velho tanque de alvenaria.
Se mantém seco como naquele tempo de securas, de ausências, de solidão de água.
Ainda que não exista nenhuma parede, nem mesmo um resquício de piso, eu vejo a
casa serpenteando na esquina do nada. Os caminhos em frente são quase os
mesmos, mas as porteiras azuis sumiram. Pegaram a mesma estrada dos comboios,
da boiada, das velhas picapes carregadas de gente subindo e descendo todos os
sábados.
Surpreendentemente,
a primeira das três aroeiras ainda está de pé guardando as cantofas e os
bem-te-vis. Mais velha que eu, talvez que meu tio, perto da idade de minha avó
que nos deixou aos 96 anos. 24 de janeiro, dia de reunião familiar, de carneiro
morto, sangue na bacia, pirão grosso e suculento. Barulho que só quebraria o
silêncio do ano um dia por vez. Primos, irmãos, tios e tias, agregados, todos
com pratos nas mãos e muito assunto nas bocas. Meu avô, em silêncio numa
cadeira, pouca reação, deixava transparecer um espírito vívido de alegria com
tanta gente para abençoar.
O
caminho da cacimba é igualzinho àquele que foi um dia. Reconheço tudo: as cores
da areia, as curvas pequenas daquela estrada feita à marcas de pneus; o
juremal. Existia uma jurema grande e curvada onde pousavam os gaviões, ali.
Agora é só um monturo de troncos escuros e sombrios no chão. Até ela se apagou
da história. Meus avós já partiram, meu tio aposentou-se e foi para a cidade. O
lugar agora tem energia elétrica, dois bicos de luz, uma geladeira vazia.
Coisas desnecessárias que nunca nos fizeram falta. Não servem a ninguém, nunca
serviriam.
As
cercas de vara, os pereiros, o horizonte no alaranjado crepuscular, continuam
ali, como eram. A cacimba agora tem um cata-ventos. Embora não seja algo
moderno, mas não se compara à beleza do puxador de madeira, manivela triste que
trazia, aos gemidos, a água salinizada do estômago da cacimba. O tanque pequeno
e estreito dos animais, onde as ovelhas, rolinhas e abelhas disputavam cada
gota. Uma combinação perfeita sob a orquestra das cigarras e o cheiro silvestre
das ervas da caatinga. Consigo ouvir uma música ao trazer de volta esta
lembrança.
O
velho armazém, última casa onde vivemos, é triste e torto. Serpentes passeiam
pelo telhado. Morcegos planam sobre nossas cabeças. No antigo baú da farinha,
um dos poucos móveis que resistem em seus recantos, meu último tesouro. Linda
em seu manto azul, estrelas douradas, o céu, a verdade europeia em seu
semblante; arcanjos e significados: as cores do perpétuo socorro. O quadro
pequeno refez minha lembrança. Mas eu é que era muito pequeno quando o vi pela
última vez.
O
tempo encardiu o plástico que protege a figura, mas limpá-lo seria um erro.
Aquela poeira encardida é uma impressão digital do lugar onde esteve em suas
últimas décadas. Ali estão guardados o vento e um pedaço do chão da minha
infância. Não pode ser mudado, porque limpar, neste caso, é apagar as memórias
e o espírito da terra.
A
santa bela e terna me olha e me conhece. Me vê desde o tempo em que era apenas
mais uma parte pequena daquela nesga de mundo, assim como a poeira da tarde ou
os gravetos no chão. A trouxe comigo para habitar uma vida nova, por vezes
solitária e de pouco espaço e é com ela que converso quando busco algum
caminho. Uma bênção quando chego, outra bênção quando saio. Nada religioso, é
coisa íntima, pessoal, a mesma coisa que tinha com a minha avó, que tenho com a
minha mãe, no mais puro instante desta sutil existência. Aquilo que me faz crer
e me faz seguir.
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