Aspirinas e urubu


Cinco e meia da manhã e ela não me deixa dormir.

Mexe-se inteira, me remexe na cama, ocupa os espaços que sempre foram meus, para meus pensamentos, minha meditação.

Pelo celular, percorro sites que me indicam o que pode ocasionar dores de cabeça constantes e o que as fazem companhias rotineiras dos melancólicos. Pergunto na pesquisa se não seria a cefaleia a causa da indisposição para o humor. Rio com certo alívio ao ler que sim, é uma causa provável.

Todas as indicações de leituras me levam para o meu frasco de aspirinas, Bayer, da velha indústria alemã. Frasco de vidro transparente porque não confio em outras embalagens. Suponho que as que vêm nesses envelopes foram ideias de norte-americanos que amam o plástico e as coisas efêmeras. O vidro é produto durador e são esses produtos duradores que tornaram a vida mais real, com tempo distinto deste de redes sociais, de urgências fugazes e violadoras.

Existe uma nova indústria do tempo escondida nos smartphones de curta durabilidade, nos telejornais e no crédito fácil que nos tornam acumuladores de bens desnecessários, inclusive de palavras sem função concreta, sem ação objetiva. É esse tempo que fragiliza as pessoas a ponto de não saberem mais amar porque não conseguem ser sinceras; dizer a verdade que lhes invade a boca.

Precisamos de pessoas civilizadas que justifiquem com argumentos e frases filosóficas – não filosóficas de rede social, filosófica mesmo, de Kant, Foucault, Gramsci – sua decisão de término das relações amorosas, de maneira a nos por a pensar, a refletir sobre suas razões. As frases adequadas nos convencem que o final de certos amores é necessário pelo bem de ambos os envolvidos, o resumo possível de uma humanidade em estado de convivência plena.

Tento amar o mundo e as coisas de maneira urbanizada, talvez por isso sinta um prazer pré-constituído ao abrir a tampinha do frasco de vidro de aspirinas. Certeza clara de que o contato com ácido acetilsalicílico vai me curar quase que instantaneamente dessa dor de cabeça insistente. Três vezes por dia, quatro nos finais de semana.

Nada faço para merecer isso. Passo quase todas as horas preso neste apartamento minúsculo. Quarto, sala, esse corredorzinho sem saída que chamam de cozinha e um banheiro tão pequeno que a porta se choca com a cancela do box. Mas é como se eu fosse a cefaleia desse cubículo. Penso nisso. Eu sou o elemento estranho dentro dessas paredes e todas as vezes que piso com força, que derrubo algo no chão, que aumento o som da tevê, não são os vizinhos que reclamam nos andares de baixo ou de cima. É o dono do corpo que tem como cabeça esse apartamento. Isso é uma cabeça e eu um verme que provoca agonia em seu interior.

Esqueci-me da varanda. Tem uma varanda. Assim dizia o anúncio quando o aluguei. Isso, para mim é embuste. Veja só: um passo, um passo apenas e acabou a varanda. Ponha uma rede, me dizem. Como vou colocar uma rede num lugar em que sequer posso esticar as canelas? Além disso, tem o intruso que me aceira. Pensa que estou morrendo.

Basta que eu ponha a cabeça fora para que ronde meu espaço aéreo. Já o vi me seguindo até o trabalho como uma sombra no céu. Dia desses, pousou aqui no guarda-corpo. Quando a dor de cabeça me acordou numa dessas tardes, ele estava me encarando fixo na única vez que armei uma rede na varanda. Se não acordo, certamente teria arrancado meus olhos achando que eu jazia no inferno.

Coragyps atratus, um bicho tão feio com nome tão bonito. A máscara da morte, um presságio ruim. Nos Andes, seria eu vigiado por um condor, na Europa por um abutre, na América do Norte por um corvo. Aqui, o que me segue é um urubu. Animal sem história, covarde. Sendo eu um bicho com tamanha facilidade para o voo, nunca ficaria secando um moribundo triste como eu. Estaria, certamente, viajando pelo mundo. Se a minha comida estivesse jogada nos acostamentos das estradas, jamais perderia a vida preso em um apartamento insignificante com alguém que me odeia.

Os urubus sempre pousam em minha sorte e é por isso que ela foi embora e me deixou com esse frasco de aspirinas. Única companhia que vale a pena. Até conversamos e se você nunca conversou com um frasco de aspirinas, não sabe o que está perdendo. Às vezes, elas não respondem, mas o fato de saber que curam minha dor de cabeça, que me proporcionam algumas horas de alívio ao refinar meu sangue e permitir que ele corra com mais fluidez por meus canais venosos, já é suficientemente uma resposta: “fale, amor, que logo lhe curo dessa angústia”.

Quando ela estava aqui, eu até gostava dessa varanda. Chamava este cubículo de casa. Não tinha dor de cabeça. Os médicos dizem que é ansiedade, estomacal, que não está na cabeça. Como não? Tudo está na minha cabeça: ela, a dor, as aspirinas me lembrando de que só elas podem curar a minha aflição. Como, de fato, curam. Quando ela vivia comigo eu era curado. Em sua ausência, a composição química a substitui. Só esse urubu maldito me rodeando é o ponto fora da curva. Maldito, faz lembrar-me de mim mesmo: um condenado de cara feia, reclamando do mundo e vivendo das sobras dos amores impossíveis; se envenenando de lembranças e se curando com aspirinas.

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